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22 de março de 2010

A mina d'água

Minhas netas: O mundo de quando eu era criança era tão diferente do mundo em que vocês e eu vivemos agora que parece que ele aconteceu há muito, muito tempo mesmo, no tempo daquelas estórias antigas que começavam sempre assim: "Era uma vez, numa terra distante, há muito tempo atrás..." Será que eu vivi no tempo do "era uma vez"? A nossa viagem na minha máquina de tempo nos fez viajar 62 anos na direção do passado, quando eu era um menino de 5 anos. Vocês vão dizer: "Mas vovô, 62 anos é muito tempo mesmo! Você viveu no tempo do era uma vez!" Vocês são crianças de 10, 11 anos de idade. 62 anos é, para vocês, muito tempo, um tempo que vocês nem podem imaginar. Quando eu tinha a idade de vocês eu sentia do mesmo jeito. Mas não é muito tempo quando pensamos nos milhares de anos, nas centenas de milhares de anos que medem o tempo em que os nossos antepassados começaram a povoar o mundo.

Vocês já ouviram falar sobre eles na escola, os homens pré-históricos, o homem de Neandertal... Pois eu vou dizer uma coisa muito esquisita: eu acho que o mundo em que eu vivia estava mais próximo do mundo desses nossos antepassados, há milhares de anos, que do mundo de vocês, o mundo em que nós vivemos! É que, no passado, o tempo andava muito devagar, porque as mudanças aconteciam muito devagar. Vocês podem imaginar quantas centenas de anos levou para que os homens descobrissem a maneira de produzir fogo? Ou o tempo que levou para que eles aprendessem a fazer cerâmica? Durante milhares de anos os homens só usavam instrumentos de madeira e de pedra. Podem imaginar o tempo que se passou até que eles descobrissem os metais - e mais - o tempo que se passou até que eles aprendessem a usar os metais? Para usar metais, para transformar os metais em ferramentas, eles tinham de já dominar a tecnologia do fogo - porque é preciso fogo para fundir os metais. E qual teria sido o acidente que fez com que eles descobrissem que os metais, colocados no fogo, a altas temperaturas, derretiam? Que momento extraordinário deve ter sido aquele quando um homem, pela primeira vez, produziu uma lâmina afiada que podia cortar o couro, cortar a madeira, cavar a terra! Os seus companheiros devem ter olhado para ele com assombro, respeito - quase como se ele fosse um deus!

Quando as mudanças acontecem muito devagar o tempo anda muito devagar. Ao contrário, quando as mudanças acontecem depressa, o tempo anda depressa. E foi isso que aconteceu: desde que eu nasci as mudanças começaram a acontecer de maneira cada vez mais rápida. E a razão por que as mudanças passaram a acontecer de forma cada vez mais rápida se deve a isso: antes as descobertas aconteciam por acidente. Mas, de repente, os homens aprenderam a fazer as mudanças de propósito. Não precisavam esperar que acidentes acontecessem. Aprenderam que, usando o pensamento, eles podiam fazer as coisas que desejavam. No lugar/tempo da minha infância as mudanças andavam de carro de boi. No nosso tempo as mudanças andam de avião a jato! A distância que um avião a jato percorre em uma hora, um carro de boi, andando sem parar, dia e noite, levaria 270 horas para percorrer! Assim, eu posso dizer que o mundo em que eu vivia quando menino de 5 anos estava mais próximo do mundo dos nossos antepassados que do mundo em que vivemos agora. Em 62 anos o mundo experimentou mais transformações - voou mais - que durante todos os milhares de anos passados em que nossos ancestrais viveram!

Eu vivi, assim, muito perto do início da história do homem! O jeito como as coisas eram feitas no meu tempo de menino era o mesmo jeito pelo qual elas eram feitas muitos séculos antes. Vou dar um exemplo. No meu tempo de menino a gente fazia sabão em casa. Para isso se usava sebo de vaca e um líquido preto que era obtido fazendo filtrar água através da cinza. Faz alguns anos visitei, nos Estados Unidos, uma aldeia que é uma réplica (réplica = cópia) de uma das aldeias onde viviam os primeiros norte-americanos, nos séculos XVI e XVII. Pois encontrei, num canto da aldeia, o lugar onde eles faziam sabão com a descrição de como eles o faziam. Pois eles faziam sabão do mesmo jeito como se fazia na minha casa! Então era como se eu, há 62 anos, vivesse no mesmo tempo em que viveram os tais norte-americanos, 400 anos antes!

No meu mundo a gente vivia perto do nascimento do coisas. Vou explicar. Veja o caso do fogo, sobre que já falamos. Na minha infância o fogo tinha que renascer a cada manhã. Ele nunca estava pronto. A dona de casa que, de manhã, tirava as brasas de sob a cinza e arranjava os paus, os gravetos, os pauzinhos e o capim em volta e sobre as brasas, estava fazendo o fogo nascer. Porque as brasas não são fogo. Não produzem chamas. São fracas demais para cozinhar. As brasas são apenas sementes de fogo que podem virar fogo se houver alguém que saiba como incendiá-las! E a dona de casa então soprava as brasas para que o capim se incendiasse, e o capim incendiado acendesse os pauzinhos que, por sua vez, acenderiam os paus! Quando isso acontecia era uma alegria. O fogo nascia porque ela sabia fazê-lo nascer! Ela conhecia os seus segredos! Aquela mulher era uma parteira do fogo!

Nas casas de hoje o fogo já aparece pronto. Não é preciso saber coisa alguma do mistério do seu nascimento. A gente torce um botão e aperta outro: o fogão a gás se acende. Basta apertar um botão do isqueiro para que o fogo apareça. A gente esfrega o fósforo na lixa ao lado da caixa e o pauzinho pega fogo. O fogo já vem pronto. A gente nunca vê o fogo sendo parido pela arte de uma pessoa.

Nunca vi uma criança assentada quieta olhando o fogo de um fogão a gás. Fogo de fogão a gás não tem graça. Mas vejo vocês, crianças, olhando, fascinadas, o fogo da fogueira, o fogo do fogão de lenha, o fogo da lareira! Por que será? Vocês têm uma explicação?

E a água? A água, nas nossas casas, não tem mistério. A gente abre a torneira e a água sai. Ou vai ao supermercado e compra água engarrafada. Olhem agora, a minha casa de pau-a-pique e fogão de lenha: onde estão as torneiras? Não há torneiras! Se não há torneiras, como é que a gente vai ter água? Se a gente quisesse ter água a gente tinha de ir até o lugar onde a água nascia! Pois a água nasce! Nasce de dentro da terra. O nosso corpo está cheio de veias. Nas veias corre o sangue. Quando a gente corta um dedo, o sangue jorra. Pois a terra é igual ao nosso corpo. Dentro dela há veias. Dentro das veias da terra corre a água: os veios d'água! A água é o sangue da terra. É a água que faz a terra viver. O lugar onde as veias da terra são cortadas e a água jorra se chama mina. Na mina a gente vê a água saindo de dentro da terra. Na mina a gente vê a água nascendo. Vocês já viram uma mina? Já viram a água nascendo? Não. Vocês nunca viram a água nascendo. O que vocês vêem é a água saindo da torneira, a água dentro da garrafa. Água sem mistério! Porque quando a gente olha para a mina, e vê a água saindo de dentro da terra, a gente sente que está diante de um milagre. Se vocês quiserem ver um milagre acontecendo, tratem de procurar uma mina...

A água saindo de dentro da terra vai, aos poucos, cavando um buraco à sua volta. Como se fosse uma bacia. Nessa bacia se acumula a água pura, cristalina, transparente, fresca. Olhando lá no fundo e gente vê o lugar exato onde a água sai de dentro da terra. Coisa parecida com uma erupção vulcânica: erupção de água. E nesse lugar onde a água jorra, as areinhas são jogadas para cima. À volta da mina tudo é vida, tudo é verde. Terra e água fazem vida. Crescem as avencas, crescem samambaias, crescem plantas de todos os tipos. E se a gente está com sede, é só fazer as mãos em concha, mergulhar na água da mina, pegar a água e beber. É impossível beber água numa mina sem ter pensamentos de gratidão por haver na natureza coisa tão bela.

Meu pai trabalhava no campo. Com foice e enxada. O sol era forte. O corpo coberto de suor. Ficava com sede. Pensava na mina. Mas não ia beber. Trabalhava mais. Queria ficar com mais sede. E aí, quando a sede era insuportável, ele ia para a beirada da mina, e bebia a água friinha... Ele me contou que isso, ele, com sede insuportável, bebendo a água da mina, era uma das maiores felicidades de que ele se recordava, em toda a sua vida... É preciso que vocês dêem um jeito de conhecer uma mina. Eu juro: uma mina é uma coisa mais maravilhosa que tudo aquilo que vocês possam ver num Playcenter. A água nascendo...A vida nascendo...A natureza nascendo. Pois, se vocês não o sabem, é nas minas que a natureza nasce...

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